Eu conferi o gorro e o cachecol.
Pus as luvas e depois a mão na fechadura.
Saí.
Meu nariz sofreu. Afinal, eu posso esquentar qualquer parte da corpo, mas o nariz não... Ele tá sempre lá do lado de fora.
Vermelho e gelado.
Mas o assunto não é especialmente o frio nasal daquela manhã. E sim o frio de alma.
Quando olhei, quando ouvi, todos se despiam dos seus sentimentos.
A moça atravessou minha frente gritando o amor sofrido e escondido pelo melhor amigo. Casado.
Um senhor queixa-se silencioso da vida ingrata, que seus filhos ingratos lhe oferecem.
A criança chora por dentro, sem explicações sobre as brigas diárias dos pais.
Um casal ama, planeja e se ilude.
Um homem deseja a mulher que passa ao lado.
E eu aqui perplexa por essa exposição sem-vergonha, sigo caminhando e ouvindo os segredos, pecados e anseios.
Nada fica oculto e por menos que eu queira, eles me contam, me confidenciam...
Essa liberdade que eu não dei à eles, me atordoa e os tranquiliza.
Como pode ser isso? Será que não percebem o que estão me falando?
Não percebem o quanto não quero essa sinceridade?
Não, ninguém percebe.
Aliás, o mundo continua perfeitamente normal fora de mim.
Continua reto.
Ninguém sabe que me diz.
Mas dentro de mim há uma revolução de sentimentos, de falas, de intimidades.
Porque eu?
Porque sobre mim esse peso?
Eu nunca quis saber das coisas. Se puder, afasta de mim esse cálice.
Eu quero ser inocente, quero andar leve, quero ver por fora...nem saber o que se passa aí.
Porque quando cruzo com você e fico te vendo por dentro, eu sofro demais.
Poupe-me disso.
Kamila V.